O que é que ela estará a fazer neste momento? Estará o mesmo calor? Será o mesmo dia? Como é que correram os exames? Como é que está a correr O Independente? Porque é que estas coisas me fazem falta? Quantas vezes fazemos esta pergunta? As minhas filhas estão contentes? E os meus pais? Como estará o meu novo sobrinho? E o velho?
É bom saber que é o mesmo céu, que esta lua brilha em Portugal, que as marcas de whisky e as séries americanas que dão na televisão são iguais. O resto é que é pior. Raio de vida. Porque é que as partidas são sempre tão preocupantes?
O tempo que passamos longe das pessoas de quem gostamos é interminável desde o dia em que nascemos. O mundo havia de ser mais pequeno. Só devia haver um país, um liceu, uma empresa, uma rua na única cidade que houvesse. Portugal é enorme. É grande de mais. Do mundo nem se fala.
Contam-se os minutos. Contam-se os quilómetros. O mundo está mal organizado. Os desconhecidos abundam. Telefonam. Aparecem. Os motoristas de táxi ocupam uma larga parte das nossas vidas. Os recepcionistas. As pessoas que nos perguntam as horas. Estupidamente, em nome da vida, ou de uma ideia de vida, perdemos o tempo que temos. Há pessoas com quem queremos estar, que querem estar connosco. Não são estas. O meu sobrinho nasceu no dia 10. Porque é que ele não pôde nascer aqui ao pé de mim?
Hoje em dia, para estarmos com as pessoas de quem gostamos, temos de trabalhar com elas, formar partidos políticos com elas, casar com elas, ter filhos delas, fazer curtas-metragens com elas. Há anos que não tenho um amigo com quem não trabalhe. A partir de certa idade, deixa-se de se ter o luxo de ter amigos só por amizade. A Luísa é um luxo. E não posso ser amigo de um canalizador porquê? Porque é que a vida é tão foleira, tão como é que hei-de dizer... profissionalizada?
O coração português vive mal. Toda a gente faz falta. A saudade é geral. É um fenómeno de massas. Toda a gente faz falta a toda a gente. Olhe à sua volta. Há uma probabilidade de 90 por cento de estar com a pessoa errada. É um genocídio sentimental. Assistimos impassivos, de mala na mão e caneta na boca, ao massacre. Só que não podemos protestar.
Aprendemos desde pequenos que as saudades são coisas boas. Vem nos livros. Conhecemos os poemas de cor. Se a alma dói, dizem-nos que é sinal que se tem qualquer coisas no peito com que doer. Se nos lembramos sem nos querermos lembrar de uma mão que não podemos agarrar, a deixar cair um cigarro, dum cais, dum riso, dizem-nos que isso é bom, que é uma prova de amor. É como dizer que deitar sangue da cabeça quando se bate com a cabeça no chão é bom, porque é sinal de que se está vivo.
A ausência, estão sempre a ensinar-nos, é quase melhor que a presença. A saudade embeleza os sentimentos. A memória melhora. As lágrimas lavam a vista. A saudade dói, mas é doce. É o que nos dizem.
Balelas! Podemos protestar, sim senhor! A saudade não é maravilha nenhuma: é apenas o sinal de que há qualquer coisa que não está bem. Há alguém que não está onde devia estar. O país é errado. A pessoa com quem jantamos é um engano. Saímos à rua e somos rodeados por sobrinhos de outras pessoas. Apanhamos um autocarro cheio de raparigas e nenhuma delas é seguramente a rapariga em que estamos a pensar. Chove. Anda tudo trocado. Onde estão os meus amigos? E os seus? Passamos a vida a apanhar aviões mentais uns para os outros. Caímos no oceano. Morremos de saudades. Isto não pode estar certo. Se isto estiver certo, nós não estamos bons da cabeça.
Os Portugueses gerem a saudade como um tesouro. Fazem-na render. Gostarão de sofrer? Claro que gostam. Se estão a penar por saudades de alguém vão buscar fotografias, reler cartas, ouvir discos antigos. Passa-lhes pela cabeça ir ter com essa pessoa? Não. Matar uma saudade é quase um crime. Os Portugueses produzem saudades como os coelhos produzem coelhinhos. Exportam-nas e importam-nas. As saudades são as especiarias finas do comércio sentimental português. Os Portugueses espalham-se pelo mundo como quem espalha a confusão. Descobrem, emigram, retornam e tornam a emigrar. Deixam pessoas onde não as deviam deixar. Está mal. A maior parte das saudades podia-se evitar.
A reacção intelectual a este estranho estado de coisas é divinizar a saudade. Há religiões, filosofias e políticas baseadas nela, construídas por grandes corações e grandes cabeças. Quando tinha 18 anos achava graça. Agora já não acho graça nenhuma. A saudade é uma extravagância. É amor que se gasta sem proveito. Ninguém aproveita - quem é que aproveita tantas lágrimas? É como acender cigarros com notas de conto. Só que não se acende cigarro nenhum. Como é que correu a oral? Como é que está o meu sobrinho novo? E o velho? Ó Diogo, pequenino do remoinho rufia, a saudade é sem-razão. Não tem interesse nenhum, nenhum, nenhum.
Não nos podemos habituar à solidão. É uma doença. Não nos devemos viciar na tristeza. Os Portugueses encaram a felicidade com estranheza. É uma interrupção. O programa - de ruinosas rotinas, desilusões e maçadas - segue dentro de momentos. Regressa-se à tristeza como quem regressa à normalidade. Isso faz com que se aceitem situações inaceitáveis. Quando enfrentamos misérias, achamo-las iguais à verdade. Praticamente ninguém acredita na felicidade. Desconfiam dela. Está mal!
Se calhar as pessoas que gostam umas das outras deviam viver nos mesmo prédios. Podia montar-se um sistema de trocas. Não há razão para viver tão separadamente. Havia a célula do Funchal, a célula de Alcobaça, et caetera. A distância é uma asneira romântica. Quem nos dera desconhecer todos os desconhecidos que nos aparecem pela frente. O tempo é uma coisa gasta. Metade do que dizemos não se ouve. O amor, que deveria ser principal e governar tudo o que fazemos, é uma distracção. A saudade não o substitui. Nós os Portugueses temos de perder a nossa maior mania. É a mania que é a distância, no tempo e no espaço, que dá valor aos sentimentos. É óbvio. É mentira. A saudade é só uma coisa que a gente arranjou para se consolar.
Os Portugueses deviam abolir a saudade. A saudade não é um estado acabado. É uma coisa que se resolve. Apanha-se um comboio, um avião, um dromedário que seja. Atiram-se os braços para a frente, agarra-se a pessoa de que se precisa e pronto. Está entregue. O coração é um objecto só. Está feito para ter e fazer companhia. Senão não funciona. Definha. Amarga. Desacredita-se.
A saudade é um disparate, um estado de excepção, uma coisa passageira que se tem de curar. É uma anemia. É um parafuso a menos. É falta de vitaminas. Os Portugueses não deviam encoraja-la. Havia de ser proibido - ou pelo menos muito difícil - viajar. É insuportável ter filhos, amigos, sobrinhos e não os ter. É inadmissível ter olhos e não os poder ver. É um erro. Somos uns panhonhas.
Não quero mandar recados nenhuns, palavras nenhumas. Nem recebe-las. O telefone é um suplício. As cartas são só recibos de sentimentos. Passamos a vida longe das pessoas com quem queremos viver - e elas longe de nós - em nome de uma coisa qualquer a que chamamos a nossa 'vida'. A vida que se lixe. O que é que ela estará a fazer neste momento?
(Miguel Esteves Cardoso)
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