Não se pode dizer que vivam juntos. Muitas vezes duas pessoas gostam muito uma da outra e não conseguem viver juntas. É o caso deles. Casaram-se e depois separaram-se. Como toda a gente. Mas, passados meses de dor e recíprocas violências, encontraram uma saída que a ambos pareceu inteligente. A ideia foi ela que a teve. Passarem os dias de trabalho cada um em sua casa e os dias feriados juntos na casa de um, ou do outro. Há coisas animais, emoções incontroláveis e, sobretudo, o constante desgaste dos dias que destroem a alegria - o puro prazer de se estar com alguém, o verdadeiro interesse pela vida do outro - enquanto o sexo se transforma numa rotina mais ou menos enfadonha. Ele chama-se João, ela Maria.
Jantam à sexta-feira num restaurante chinês e decidem a casa para onde vão. Um pequeno saco basta. Na segunda-feira tomam o pequeno-almoço juntos e depois despedem-se, cada um partindo para seu lado, com o coração levemente aflito. Durante os dias em que não estão juntos, estão proibidos de se falarem ao telefone ou comunicarem de qualquer outra forma. Salvo uma emergência imprevisível - um incêndio na cozinha, a morte de um familiar, uma súbita fragilidade da alma.
Conheceram-se no liceu. Casaram-se tinham ambos vinte e quatro anos. Agora vão fazer trinta e um. É muito forte o amor que os une. Um amor só deles, que as pessoas não compreendem e por isso criticam. O amor precisa de ser protegido, abrigado, alimentado com todo o cuidado. O quotidiano é o pior inimigo. Corrói o imprescindível respeito pelo outro, por quem o outro é. Consome a distância que é preciso manter para que o outro possa ser quem é. Começa a asfixia.
É um engano grande julgar que não se pode viver com esta pessoa mas que se poderá viver com outra, porque na maioria dos casos é a própria vida que nos abandona e afasta. No caso deles há um facto relevante. Nenhum deles quer ter filhos, fundar, como se diz, uma família. Pelo menos por enquanto. Ambos conhecem demasiado bem as famílias.
Trazer ao mundo uma vida não só é uma responsabilidade de que não se conhecem os limites, como uma inconsciência para a qual nunca se está suficientemente preparado. Pelo menos por agora.
Ele tem uma casa junto ao mar, ela um apartamento no centro da cidade. Ele é economista, ela editora num jornal diário. Quando se encontram riem dos acidentes da semana, do ridículo comportamento dos humanos, dos problemas insolúveis. O trágico também pode ser visto de modo a merecer uma gargalhada.
Falam dos livros que lêem, de um programa passado na televisão ou na rádio, do concerto para o qual é preciso comprar bilhetes pela internet, de pequenas coisas sem verdadeira importância. Não se criam aqueles deprimentes silêncios quando já não se tem nada a dizer um ao outro e, dentro de um carro, cada um olha em frente com receio de olhar para o lado e deparar com um desconhecido.
Os pais não percebem, os amigos não percebem, ninguém percebe. Toda a gente conspira para que aquela frágil e preciosa relação termine. Quase todos têm pavor de ficar sozinhos, de morrer sozinhos. O que os agarra é o medo.
Por isso condenam-se aos piores compromissos. Eles, pelo contrário, sabem não só que há em qualquer humano uma solidão que nunca pode ser superada, como que só ela abre um espaço onde o coração pode viver livre. Os corações também precisam de respirar.
Todos os anos, em meses variáveis, fazem uma viagem juntos. No ano passado foram a Viena, este ano pensam ir à Finlândia. Juntos decidem todos os pormenores, embora cada viagem deva ser uma aventura da qual não se conhece o desfecho. Juntos vêem-se coisas que de outro modo não se veriam, porque cada um aponta ao outro o que, a sós, lhe poderia passar despercebido. Aprende-se mais porque ao falar as palavras chamam pelas coisas tornando-as mais nítidas, mais presentes. Num casamento comum há sempre um que em determinado momento precisa de se calar. Ali não. Antes de adormecer, adoram relembrar o que viram, sentiram, descobriram. E o sexo vem e chega, sempre poderoso, transportando-os para íngremes paisagens, súbitos abismos. Como dois desconhecidos que se desejam loucamente dentro de um comboio e não se recusam ao mais premente prazer.
Em Viena, o que mais a impressionou foi uma exposição das obras do último ano de vida de Picasso, uma gigantesca e heróica luta contra a morte. Ele, o que mais apreciou foi visitar a casa de Freud, um lugar onde se conspirou contra a sufocante normalidade dos costumes. Nenhum deles sabe até quando aquela relação poderá durar. Pode não se conseguir continuar. Pode acontecer uma paixão imprevisível. O amor é um trabalho pelo qual se tem de lutar e o que já se conseguiu dissipa-se no passado. Eles estão preparados para o fim. O que importa é acreditar no que ainda há-de vir, no indomável. Se assim não fosse não valeria a pena. Faz parte do amor não saber quando pode acabar. Sempre aquela pequena dor que acompanha o verdadeiro amor.
(Pedro Paixão)
2 comments:
Os corações também precisam de respirar.
Amei. E tenho dito.
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